No mês de junho, minha playlist mental intercalou obsessivamente três pensamentos: eu vou me matar (fixado), lavar o cabelo amanhã e planejar as férias do meu irmão.
Dos três, eu vou me matar é o mais de boa. Pouco se fala sobre o efeito terapêutico de repetir “eu vou me matar” entre vinte e duzentas vezes ao dia. É a versão verbal de fumar um cigarro na varanda. Tem algum prejuízo a longo prazo?, sem dúvida, mas aqui e agora é uma delícia.
Lavar o cabelo amanhã é mais preocupante. O inferno de ter cabelo escuro é que dá pra ver a caspa do outro lado da rua, e eu não sei vocês mas no terceiro dia sem banho meu couro cabeçudo entra em decomposição. Que fique CLARO que o resto do meu corpo toma banho diário — sem querer me gabar —, mas o cabelo tem um regime à parte. Lavando todo dia fica seco, de três em três dias dá caspa. Daí a obsessão: minha vida é um constante lavar-o-cabelo-amanhã.
(Nota da autora: a pessoa de quem eu peguei a mania de falar couro cabeçudo pq é mais engraçado que couro cabeludo usou a expressão sem querer numa conversa com o cabelereiro e só se deu conta dois dias depois.)
Sobrou planejar as férias do irmão.
Por algum motivo, a experiência universal de entreter seu irmão de 16 anos em visita a São Paulo não é contemplada por nenhum guia online. Ninguém criou um roteiro de viagem voltado a mulheres cujo irmão doze anos mais novo e morador de um fim de mundo de vinte mil habitantes veio passar as férias no seu apartamento de 45m². Misoginia? Sem dúvida. Então eu fiz o meu.
Como Entreter Seu Irmão de 16 Anos Em Visita a São Paulo
Um guia para mulheres cujo irmão doze anos mais novo e morador de um fim de mundo de vinte mil habitantes veio passar as férias no seu apartamento de 45m²
O guia abaixo é dividido entre atividades recomendadas e não recomendadas, de acordo com o quanto a cobaia (meu irmão) gostou do passeio.
não recomendo: aizomê + japan house
Nossa primeira parada foi o Aizomê, um restaurante no topo da Japan House que custou um rim e uma buceta pra almoçar e o meu irmão nem gostou. Diz ele que achou a comida boa, mas eu senti ele meio aterrorizado com o ambiente. Ficou a maior parte do tempo em silêncio, olho morto. Nem a exibição de brinquedo japonês ele gostou. ⭐ ⭐ ⭐
recomendo: outback
O plano com o Aizomê era expandir o paladar do meu irmão. O que eu não tinha considerado é que pra tirar ele do básico eu precisava primeiro expor ele ao básico, pq onde ele mora nem isso tem. Eu mesma quando morava lá só comia no Trailer da Regina — uma senhora com um trailer estacionado no quintal vendendo x-tudo a 80 centavos. (Não vem ao caso quantos anos eu tenho.)
Se é pra ser básico, não tem jeito. Vamo de Outback.
A franquia Outback é o grande trunfo do michellysmo cultural. Você bota aquele bumerangue de aperitivo na frente de um adolescente do interior e ele sai cantando as glórias da cidade grande. Dependendo do seu irmão, tem até um ângulo didático. O meu ficou perguntando “australiana essa banda?” quando tocou Arctic Monkeys e depois disse que achou que a Austrália ficava “na América do meio.” Ontem eu perguntei o que ele achou do Outback e ele falou que é o melhor restaurante que ele já foi na vida. ⭐ ⭐ ⭐ ⭐ ⭐
não recomendo: arte do futuro
Tá rolando na FIESP o “FILE”, um festival de arte eletrônica interativa. Ótimo! Jovem ama interagir. A linha no chão do museu existe justamente pra impedir que a criança entre e vá direto abraçar o quadro. Só que a ideia de interação do FILE é de uma pobreza espiritual inacreditável. Tinha um estande que era literalmente um playstation aberto num jogo normal. Gostou? Te impressiona o futuro?
Quanto mais coisa a gente via, mais deprimente ficava. O primeiro destaque era um telão gigante e uma câmera de escanear rosto. Sabe aquele filtro do instagram que vc tira uma foto e ele põe a sua cara dentro de um vaso sanitário e dá descarga? Tipo isso, só que em vez do vaso é um boneco cinza e em vez de dar descarga o boneco fica andando num fundo branco. Não acontece mais nada. E não é pra ser conceito, é só uma demonstração tecnológica mesmo. Que tecnologias são essas…
Até aí tudo bem, arte medíocre em São Paulo é o que não falta. O que me deixou puta mesmo foi o olho.
Essa do olho era uma brincadeira com a ideia de telescópio. Cê bota seu olho num tubo gigante e bege suspenso do teto, parecendo um aparelho de tortura interdimensional, com uma câmerazinha de um lado e um projetor do outro. Aí ele filma tua íris, joga na parede e transforma (via inteligência artificial) em imagens do espaço.
Beleza, tamo lá eu e o José tentando escanear a íris dele e o negócio não vai de jeito nenhum. A fila toda dando ideia. Mexe pra lá! Olha pra cima! Sai e tenta de novo! Nisso vem o pobre do voluntário da exposição explicar que a PORRA do tubo não funciona em quem tem olho castanho. E comenta entredentes — “acredita que a artista é brasileira…” ⭐⭐
recomendo: show de hardcore
Na falta de um parque de diversão, um show de hardcore é a coisa mais próxima. Gostoso demais encostar no palco e sentir o corpo inteiro vibrar. Só toma cuidado pro seu irmão não se empolgar e entrar no mosh; o meu eu tive que segurar pela gola.
O show que eu levei o José foi da banda Defdot, que eu escolhi pq achei engraçado que o single deles chama funcionário do mês: Linhares. É uma banda pequena, abrindo pra uma banda ligeiramente maior, com uma outra menor ainda tocando primeiro. No intervalo entre as bandas menores, o guitarrista magricela sumiu atrás do palco e voltou com a cara pintada de branco e usando uma camiseta do Prince.
Pra quem quiser colar num show aleatório com seu irmão de 16 anos, eu recomendo a Cultural Cecília, que além de excelentemente localizada no coração da violência patrimonial de São Paulo conta com uma ampla seleção de três cervejas artesanais amargas e — o melhor de tudo — não pede RG. ⭐ ⭐ ⭐ ⭐
a melhor escolha: jogo de escape room
Escape room é um tipo de jogo em que você paga cem reais pra te trancarem numa sala sem janelas. O que separa o escape room de um fetiche com cárcere privado são as pistas de como sair. No lugar que a gente escolheu tinha: um quebra-cabeças no bolso de um terno, uma passagem secreta dentro do armário, um cofre atrás do quadro, uma chave escondida num cano, um ímã pra puxar a chave escondida no cano, uma chave pra destrancar o cadeado prendendo o ímã que puxa a chave escondida no cano, e essa outra chave escondida em algum lugar dentre duas malas, seis gavetas, uma mesa com fundo falso e uma estante perfeitamente normal.
Cabe admitir aqui que eu esperava botar pra fuder nesse jogo. Cheguei a dar uma enrolada pra ver se não saía cedo demais. Dei uma folheada nos livros… testei os botões da lanterna…. Quando fui ver a gente tava tão perdido que começaram a mandar dicas ilustradas por baixo da porta. Uma hora mandaram uma anotada à mão; é de se imaginar que ninguém nunca tinha precisado dessa dica antes. Tiveram que improvisar.
Considerando a humilhação envolvida, até que eu gostei bastante— e o José mais ainda. Pro moleque, o ponto alto da experiência foi usar o chapéu e lanterna de detetive que te entregam na porta. Da próxima vou ver se arranjo um sobretudo na Shein. ⭐ ⭐ ⭐ ⭐ ⭐
parecer da cobaia
Pra finalizar, eu perguntei ao José o que ele achou da semana e qual atividade ele mais gostou. Nisso ele pensou um pouco e falou que a melhor parte das férias, na verdade, foi aprender a fazer omelete pro café da manhã.
respostas
Falando em cobaia, hora de responder o telegram.
ei Laura, tudo bem? to saindo com um boy e ele é super legal, romântico, sensível, o único "problema" é que ele é bem calvo. o que você faria se fosse eu? me ajuda amiga (A. C.)
Bom, o que eu NÃO faria é chamar um homem sensível de “bem calvo,” pro coitado não se matar. Tirando isso eu não sei? E daí se ele é calvo. O homem pouca telha também merece amor…
laurinha, desde que entrei na faculdade eu fico inseguro de estar ficando para trás. meus colegas de sala todos falam 3 línguas e eu nem sei português direito. vc acredita que depois dos 20 é mais difícil aprender outra língua? é tarde demais? abraço pros leitores! (J.)
Tarde demais. Sinto muito. Eu tentei aprender francês esse ano e só o que entrou na cabeça foi oui oui, parfait e très bien. Só Deus sabe o que eu vou dizer se discordar de alguma coisa.
Ano passado eu tentei aprender tcheco no duolingo e não adiantou porra nenhuma também. O app vai afunilando o vocabulário até você só conseguir se comunicar numa fazenda. Pozor na vlka. Cuidado com o lobo. Hledám to prase. Estou procurando um porco. Eu não estou procurando um porco. Eu não estaria numa situação de procurar um porco.
Mas de longe a parte mais difícil de aprender um idioma é decorar os gêneros de cada objeto. Por isso que os Estados Unidos e a China dispararam na frente, inglês e chinês todo objeto é gênero neutro; enquanto isso tá a atrasada aqui tentando lembrar se em alemão é A árvore ou O árvore ou uma outra terceira coisa.
O que eu posso te recomendar, pra não dizer que não há NADA a ser feito, é continuar trabalhando o português mesmo. Sempre tem coisa nova. Esses dias uma amiga minha comentou que o ponto do brigadeiro (“aquele que você passa a espátula na panela e consegue ver o fundo”) chama PONTO MOISÉS. Ponto moisés! E o francês que se fooooooooda
Laurinha, me esclarece uma coisa. Tava vendo Os Simpsons com a minha sobrinha e contei que quando eu era criança a gente comprava toque dos Simpsons pro celular. Ela não entendeu nada do que eu disse. Eu sou velho? (K. L.)
Espero que não, porque eu entendi perfeitamente, e eu não sou velha. Eu sou uma das pessoa mais jovens que existem.
Tendo dito isso, é engraçado o quão rápido uma referência deixa de fazer sentido pra próxima geração. O próprio Simpsons tem uma dessas, com o palhaço apresentador lá. Na infância dos roteiristas do programa realmente tinha palhaço apresentando programa normal— enquanto no início dos Simpsons já era um conceito meio antiquado, bom de tirar sarro. Vinte anos depois, parece que a graça é o absurdo de ver um palhaço na tv.
Outro bom exemplo é aquele negócio de escorregar em casca de banana. Teve uma época (lá pelos anos 30) que a banana era um negócio normal de se lanchar na rua, e virou um problema urbano escorregar na casca que algum porco largou no chão. Falar disso em comédia da época era tipo quem faz standup sobre passar raiva no Bumble. Desde então a piada virou clichê, o clichê virou paródia, a própria paródia virou clichê e ninguém escorrega em banana mais.
Ou seja, da próxima vez que a sobrinha rir da tua cara por ficar falando de toque de celular, lembra que você mesmo pode tirar a tarde pra rir da cara de um idoso. O segredo da juventude é nunca estar perto de alguém mais novo que você.
Antes de fechar a edição, um momento democracia direta: você prefere que o Respondendo saia às segundas ou sextas?
A enquete acima não cria obrigações contratuais ou morais para a autora.
vale destacar que o guia também serve para filhos que estão desesperados por não saber fazer com os pais. os meus tem a mesmíssima opinião sobre o outback, só que na minha vez tava passando programa da rita lobo na tevezinha e meu pai perguntou se ela era australiana
Eu tenho um irmão que é 13 anos mais novo e me identifiquei muito com o caso do toque dos Simpsons. Na minha infância eu gastei o plano telefônico da minha mãe inteiro porque eu caí no erro de mandar "RAIO X" para o número 77888, mas tudo bem né? 2005, ano da desinformação e da ignorância, era totalmente possível que por apenas 8,00R$ + taxas, eu pudesse transformar um Sony Ericsson num raio x ambulante. Enquanto o meu irmão nesse fim de semana, deu um prejuízo de 50R$ pra minha mãe porque viu um anúncio que prometia dinheiro infinito num jogo mobile. A geração muda e as referências se perdem mas os golpes permanecem.