Já faz alguns anos que a Dani Albuquerque, primeira-dama da RedeTV, tenta se livrar de um mal-entendido: a história de que ela escolheu cursar Jornalismo depois de ler uma caixa de Toddynho.
Segundo a Dani, a coisa do Toddynho era brincadeira. "Foi minha primeira entrevista. Eu tava conversando e a jornalista fazendo a melhor amiga.” Perguntaram tudo do vestibular, todos os detalhes — queriam saber até o que ela tomou de café da manhã. Aí a Dani comenta que no dia da prova, por coincidência, a profissão da caixa do Toddynho era a mesma que ela tinha escolhido. “Jornalista é uma coisa do cão! Fica se fazendo de amigo pra gente soltar a língua!”, diz Dani a um jornalista.
É uma explicação curiosa. Pelo visto a Daniela só aparentou não entender de jornalismo depois de ser trapaceada por uma jornalista, devido a não entender de jornalismo. Até aí tudo bem. A questão é que ela nem precisava esclarecer nada: a chance de sucesso de quem confia seu futuro a um Toddynho é mais ou menos igual à do neurótico que assina o Guia do Estudante.
Eu mesma tive o meu momento Toddynho semana passada, com essa imagem:
Algum amigo postou essa foto no finado Twitter e ela não sai da minha cabeça desde então. Strogonoff de cheddar? O que significa um strogonoff ser de cheddar? Se você bota queijo num molho que não leva queijo, não vira outro molho? Não é assim que os molhos se inventam? Quem é Camila Loures? Que lugar bege é esse com espelho na parede e um quadro do Neymar? Pra quê essa pimenta gigante em cima do arroz menos apimentado que eu já vi? Quem é Camila Loures???
Eu preciso de respostas. Eu ouço o chamado. É hora de virar jornalista.
capítulo 1. strogonoff de cheddar
Em junho de 2019, a mãe da youtuber Camila Loures estreou seu agora-extinto canal de receitas com o vídeo STROGONOFF DE CHEDDAR !!! — três pontos de exclamação. “Claro que se você não gosta de cheddar, cê não vai gostar”, diz Camila: “o gosto é muito forte.” Sábias palavras.
O strogonoff é uma receita especial da sra. Loures, que além de cheddar leva MILHO e cubinhos de frango — mas nada de champignon, que a filha odeia. Já a foto que me fisgou é lá do Paris 6, um restaurante paulista que homenageia a Camila tirando do strogonoff tudo que ela gosta. Em vez de frango, filé mignon; em vez de milho, uma curiosa ausência de milho. E dá-lhe champignon!
Camila não é a primeira famosa — em sentido amplo — a não se reconhecer no xará do Paris 6. O canal do restaurante postou esses dias um vídeo do PAVÊ DE OREO À “BRUNA BIANCARDI”, a ex do Neymar, que mostra a coitada admitindo nem ter provado o pavê ainda. Já no vídeo do FETTUCCINE ALFREDO À "LUISA SONZA", postado em 2018, a Sonza recusa o ciboulette, reclama do estragão e põe bastante sal a gosto, “que eu gosto muito”.
É de se pensar, então, que nenhum dos DUZENTOS E TRINTA NOVE PRATOS do atual cardápio passou pelo crivo dos homenageados. Os DADINHOS DE QUEIJO COALHO À “BÁRBARA EVANS”? Nunca provou. CROQUE MONSIEUR À "ZÉ FELIPE"? Nem ouviu falar. FRICASSÉE DE CHAMPIGNONS AU TRUF À "SERGINHO MALLANDRO"? Esquece.
Talvez te pareça estranho dedicar um fricassê de cogumelo ao Sérgio Mallandro, mas é dessa tensão interna que o Paris 6 se alimenta. Quase como se o cardápio fosse criado girando uma roleta de prato e outra de subcelebridade. GRAND PARMEGGIANA À "RODRIGO FARO". CARPACCIO MÉDITERRANÉE À "JAQUE DO VÔLEI". SAUMON AU PALMIER GRILLE A "FISIO FRANKLIN MARTINS". Fisio Franklin Martins???
capítulo 2. quem é Fisio Franklin Martins?
Dos DUZENTOS E TRINTA NOVE pratos do atual Paris 6 (cabe frisar), só três não têm um nome atrelado. O resto varia: às vezes é um hambúrguer do Péricles, às vezes é a bruschetta da irmã do Gabigol, que chama Giovanna com D. Dhiovanna.
Pra facilitar, eu dividi os homenageados do cardápio em três categorias: SEI QUEM É, O NOME NÃO ME É ESTRANHO E NUNCA OUVI FALAR.
Metade-metade. Um é pro Fabio Rabin (?), outro pra Cleo Pires. Um pra Claudia Raia, outro pro Dr. Pitombo — Cid Pitombo, cirurgião bariátrico das estrelas, que passa os dias postando esse tipo de foto no Instagram:
Bastante profissional de saúde, aliás. Só de médico tem o nhoque “DR. PITOMBO”, o bolo à "DRA. JANINE ARAÚJO" — estética corporal —, a tortinha a "FLÁVIO GIKOVATE" — psiquiatra… Todo o escopo da medicina classe-média-alta. Entra aí também o fisioterapeuta Franklin Martins, que ainda não bateu 5 mil seguidores no instagram.
Claro que pro resto do cardápio isso não é nada. Nem 3% dos homenageados são da saúde. Menor que essa categoria, só a de Ex-Bailarina do Faustão: Lorena Improta (dadinhos de tapioca) e Bia Michele (creme brulê ao chocolate branco).
Quem bomba mesmo é influencer. Simpatizei com uma querida cuja bio no instagram anunciava: Um pouco de tudo! Nem ela sabe o que dizer.
Dos 60 influenciadores homenageados, três são ex-Fazenda — incluindo o intrigante BAIÃO DE DEUX À "DRA. DEOLANE" — e 14 são ex-BBB. Aliás, a simbiose BBB-PARIS 6 é fortíssima. Bebem das mesmas águas. São mais de CINQUENTA pratos com relação direta ao Big Brother, entre apresentador, participante e até nomes cotados. O cheesecake da Jade Picon chegou no cardápio três anos antes dela entrar pro BBB. Priscila Fantin, suspeita de envolvimento com o BBB24, já garantiu o mil-folhas dela.
Daí vêm os artistas: uns 47%, entre música e atuação. (Eu ia botar “novela” mas quis homenagear a fala do Mosca, do BBB desse ano, dizendo que é um “artista que trabalha com atuação”.) E aí é um balaio: escargots à “MILTON NASCIMENTO” disputando espaço com os bolinhos de arroz à “BRUNO BELUTTI”. Sopa de cebola à “ANTONIO FAGUNDES” e bolo de Ferrero Rocher da “DRI BIROLLI”. Essa talvez você conheça como Adriana Birolli, a riquinha de Fina Estampa. Não sei por que encurtaram o nome dela. Ficou parecendo o scat no início de Zé Droguinha.
Também rola bastante atleta no cardápio — vide as FRITES AU FROMAGE À “DENTINHO” —, mas a ocupação que eu mais gosto é a do Parente de alguém. Aí tem de tudo. Marido do Carlinhos Maia, irmã do Gabigol, e o verborrágico RAGOUT D'OSSOBUCO SAUCE AU TOMATE ET BRIE SUR CREME DE POLENTA À "NEYMAR DA SILVA SANTOS", vulgo Neymar Pai.
Pra todo esse papo de porcentagem e gráfico, eu não entendo melhor a porra do cardápio agora do que eu entendia antes. Na real, quanto mais eu analiso mais confusa eu fico. Como que um restaurante oferece (vale lembrar) DUZENTOS E TRINTA NOVE PRATOS todos os dias, e inclusive 24H POR DIA dependendo do local? Quem tá saindo da balada pra mandar um risoto à provençal às três da manhã?
Num momento de desespero investigativo, eu me rendo ao jornalismo in loco.
capítulo 3. o restaurante italiano Paris 6
Reservada a mesa pra dois, eu recebo um email do restaurante:
Olá, [NOME ERRADO].
É um erro de grafia que eu mesma não cometeria, sendo bem acostumada a escrever meu próprio nome, e um erro que um sistema automatizado não seria capaz de cometer. Qual é o esquema então? Tem alguém no Paris 6 cujo emprego é enviar manualmente as confirmações de reserva??
Talvez eu tenha negligenciado um aspecto importante do Paris 6 nessa reportagem: dizem que o restaurante é uma merda. Dizem. Ouço falar. Pedi no Twitter depoimentos pra usar nesse post, e poucos trouxeram algo positivo. Meu irmão costumava fazer aniversário lá, diz o Vinicius. De tão ruim, eu deixei de ir no aniversário do meu irmão.
A experiência é tão degradante que até desperta um lirismo no arrependido. Alface com pitadas de vazio. Gosto de nenhuma fruta. Outra testemunha, o Roberto, descreve o cardápio como pratos com cara de escombros.
Um entrevistado anônimo comenta que o próprio restaurante é decorado evocando paris mesmo, mas como se uma criança imaginasse paris. Cortinas pesadas, sofás de veludo, papel de parede estampado, só que tudo com um aspecto muito plástico, imitando materiais mais tradicionais.
Isso quando a crítica não vira acusação. A mais comum era a de que todos os pratos do Paris 6 são congelados. É assim que eles sustentam o cardápio tão grande, diz a Mari. Outro entrevistado observou que os pratos…
Interessante notar que o caos das subcelebridades acaba gerando uma distração: no afã de rir do fettuccine à Luisa Sonza, o fettuccine em si passa despercebido.
Congelado ou não, o fato é que 12 pratos do cardápio são variações de espaguete, 12 são nhoques, 14 são fettuccine e VINTE E DOIS são risotos. Pra comparar com alguns restaurantes franceses mais tradicionais, o La Casserole tem exatamente 1 risoto e 1 fettuccine. São as únicas massas de um cardápio de 23 pratos fixos — ou seja, menos de 10%. No Ici Brasserie, a proporção é menor ainda: duas massas pra 46 pratos.
Já no Paris 6, cujo próprio nome já diz, os pratos de influência italiana são maioria.
Considerando apenas os pratos salgados, 40% são de origem definitivamente italiana. Coisa do tipo espaguete à bolonhesa, bife à parmegiana — pratos com CIDADES DA ITÁLIA no nome. Porra amigo… aí você me complica. Eu fui até razoável e incluí entre os pratos da França qualquer massa dita “À LA FRANÇAISE”, como o curioso SPAGHETTI CARBONARA À LA FRANÇAISE AU POULET A "ALEXANDRE PATO", que em vez de pato usa frango. Ainda assim, o francês é minoria.
Inclusive logo atrás do francês vem a comida brasileira em peso. Tudo bem que o strogonoff é a versão brasileira de um prato russo, mas com ISCAS DE PEIXE À "MAURO NAVES", DADINHOS DE TAPIOCA À "LORENA IMPROTA" e o fantástico PICADINHO CARIOCA À "WOLF MAYA" fica difícil discutir.
Mesmo quando é discutível, parece mais disfarce do que sincretismo gastronômico. O PARMENTIER À "DEYVERSON" na verdade não é um parmentier e sim um escondidinho normal, com carne seca e tudo. Já a TRANCHES DE PICANHA À “DUDU NOBRE” é só uma picanha normal com farofa de ovo e arroz carreteiro. Bota uma boina aí e uma baguete debaixo do braço e fechou.
Aliás, prato TRADICIONAL mesmo é raro nesse cardápio. Os outros restaurantes têm truta noisette, bife bourguignon, umas coisas que só de nome cê já sabe que é França FRANÇA mesmo. Nem precisa ser muito chique: um coelho ensopado, uma costela de cordeiro, uma porra de um molho que não seja carbonara.
Quando tem, era melhor não ter. Qualquer clássico no Paris 6 vira uma parada irreconhecível. Eu não incluí as sobremesas naquele gráfico da origem do prato porque todas as sobremesas são tecnicamente da França — crepe, petit gateau, creme brulê — mas cê abre e é tipo… creme brulê de nutella e chocolate branco à Mel Maia.
Lembra quando eu comentei que, dos 239 pratos desse cardápio, só três não têm um “famoso” associado? Um deles é o CRÈME BRÛLÉE CLASSIQUE: açúcar, baunilha e ovo. Quase como se o Isaac tivesse tombado essa parte do cardápio como patrimônio cultural francês, pra não chegar nenhuma sub pedindo Oreo em cima.
O Isaac em questão é Isaac Azar, fundador do Paris 6. Ele aparece em todos os vídeos do canal, exibindo diferentes graus de desânimo.
Pela quantidade de ex-BBB no cardápio, eu tinha uma ideia do Paris 6 como fruto da mente de um MARKETEIRO — um alpinista social pronto pra sacrificar a própria reputação por um suspiro de relevância. Mas assistir o Isaac se frustrando com a incapacidade da Luísa Sonza de jogar azeite na panela, ou se entediando com o carisma zero da Bruna Biancardi, acendeu uma luzinha na minha cabeça.
Pensa comigo. No vídeo do espaguete bolonhesa com queijo a Dedé Santana, o Isaac passa um tempão falando de como amava os Trapalhões. Ensina com todo carinho, não aborrece o velho nem nada. Já no vídeo da MC Mirella ele pergunta se ela sabe abrir um ovo. O próprio Tirulipa (filho do palhaço e deputado federal Tiririca) leva um esporro porque afogou o risoto. Uma coisa meio humilhante… quer dizer, é meio humilhante por natureza e o Isaac se encarrega do resto da humilhação.
Vou colocar uma ideia na mesa e você vê se concorda. E se o atual Paris 6 — celebridade, franquia, atenção nacional — é na verdade um homem arruinado pelo próprio sucesso?
capítulo 4. quem tem medo de Isaac Azar?
Sexta-feira passada, às oito em ponto, eu e meu fiel escudeiro Renan descemos de um uber na porta do Paris 6, que fica na esquina de outro Paris 6 e a uma quadra do Paris 6 Vaudeville. Eu dei o nome da reserva, rolou um rápido desentendimento porque o nome tava errado e seguimos pra nossa mesa perto da janela. Na parede, uma dedicatória surpresa:
Talvez um outro jornalista focasse no fato de que a placa data do mês seguinte ao Toguro ser indiciado por homicídio culposo. Até aí tudo bem — só que a verdadeira revelação da parede tá um pouco acima, na seção de autógrafos.
Esse é um autógrafo do Mauro Naves, das famosas iscas de peixe à Mauro Naves, e também de uma longa carreira no jornalismo esportivo. Data de julho de 2009. Mas não é o autógrafo que interessa: é o cardápio.
Lombo de coelho. Costela de cordeiro. Molho béarnaise. Até um cassoulet, o prato francês mais ignóbil de todos (feijoada de feijão branco) entrou na brincadeira! Que PORRA é essa? E olha o tamanho do cardápio! Mesmo somando o verso não dá cem pratos, bem menos da metade do menu atual — e só quatro dos pratos são massas.
No cardápio atual do Paris 6, depois de um jumpscare do Isaac olhando no fundo dos seus olhos, vem a proposta do lugar: uma homenagem ao bistrô francês. Um refúgio que transportasse os clientes à Paris dos anos 20. Pelo cardápio do Mauro Naves, dá pra ver que foi assim mesmo que começou. Mas a influência francesa foi diminuindo, as subcelebridades tomaram conta, e agora a chance de você achar no cardápio um molho béchamel é um pouco maior do que a de achar um Kit Kat.
Pra tanto alarde, o menu do Paris 6 até que é bastante moderado. Uma das minhas Questões Jornalísticas — eu sou jornalista agora. jornalismo é só querer — era averiguar qual porcentagem do cardápio leva catupiry ou cheddar. Acabou que a porcentagem é zero. Mussarela? Só de búfala. O diacho do STROGONOFF DE CHEDDAR da Camila Loures foi embora e nunca mais voltou. Até a pimenta gigante que adornava todos os pratos saiu de circulação.
E a sobremesa? E o Grand Gâteau Paris 6, com o bolo coberto de calda e um picolé empoleirado em cima? Nada de mais. O visual é bem menos impressionante em pessoa, e de alguma forma a mistura de doce de leite, chocolate, leite condensado e Sonho de Valsa do GÂTEAU CARLINHOS MAIA acaba não tendo gosto de nada. Igual quando você mistura um monte de cor no desenho e fica tudo marrom.
O bolo em si tava mole demais, como se tivesse aquecido em banho-maria em vez de assado, e a carne do strogonoff à Mumuzinho tava meio chiclete. O conchiglione até veio gostoso, mas gostoso tipo um Sadia caro. Renan queimou a boca na primeira garfada e sussurrou Você me paga, Yasmin Brunet.
Uma última história. Em 2017, o Paris 6 alegou que o bolo com sorvete de uma gelateria em Guarulhos violava o direito de marca do Grand Gâteau Paris 6. Perdeu. Recorreu na segunda instância, perdeu de novo. Diz o desembargador:
Beira ao absurdo que [o Paris 6] queira impedir a [gelateria] ou terceiros de servir um pequeno bolo num pote com um picolé na diagonal (…)
A decisão é correta, mas do absurdo eu discordo. Absurdo é justamente o que falta. O restaurante italiano Paris 6 viu seu conceito reduzido a pó. Não é mais comida francesa, não é bistrô anos 20. Aí mudou de marcha, apelou pra baixaria. Cheddar no estrogonofe, sobremesa com um quilo de chocolate. Mas agora até isso foi embora também. O cardápio não agrada nem ao paladar adulto nem ao infantil. É um parque de diversões sem montanha-russa. Se tem alguma coesão nesse cardápio, é a sombra da figura atormentada de Isaac Azar.
Se você estiver lendo isso, Isaac, por favor, não me processe. Eu já deixei todo meu dinheiro com você.
tô só esperando a inclusão de “coca zero à laurinha lero” no cardápio para ir prestigiar
Trabalho de campo, investigação séria e comprometida, números, gráficos, estatísticas, história!... O jornalismo respira. Muito obrigada, Laura Scamparini.